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Além das Águas: a invisibilidade feminina na luta pelo saneamento básico no Brasil

Devido a sua extensa dimensão territorial, o Brasil é um país que enfrenta muitas desigualdades, que se manifestam no âmbito econômico, social, educacional, de saúde e infraestrutura. Neste cenário, o saneamento básico é diretamente afetado pelas disparidades regionais, uma vez que, para sua universalização, são necessários investimentos no setor que não são distribuídos de forma equilibrada no Brasil. Por sua vez, a ausência ou deficiência dos sistemas de saneamento são responsáveis pelo agravamento das desigualdades mencionadas, gerando um círculo vicioso que compromete diretamente o desenvolvimento das regiões e a melhoria na qualidade de vida da população.

Que são muitos os desafios enfrentados para a universalização do saneamento básico, isso já é do conhecimento de todos e amplamente debatido. No entanto, o que pouco se discute são as questões de gênero e a sua relação com o saneamento, em especial na vida das mulheres, resultando, como indica o próprio título deste artigo, na invisibilidade feminina. Em uma cultura onde a mulher, em geral, possui mais reponsabilidades domésticas, além das maiores demandas para cuidados pessoais, é sobre ela que recai com mais peso a deficiência do saneamento. As consequências não são somente diretas, como a falta de água tratada e a ausência de redes de coleta e sistemas de tratamento de esgoto, mas impactos secundários associados ao afastamento do trabalho devido ao maior tempo gasto com afazeres domiciliares, à evasão escolar, e até mesmo violência sexual aparecem como fatores que demonstram que discutir saneamento, sob a ótica do gênero, é essencialmente importante e urgente.

O que chama a atenção em relação ao fato da questão de gênero ser pouco debatida no âmbito do saneamento básico é que no Brasil, conforme a projeção da população para 2020, apresentadas em IBGE (2018), há mais mulheres do que homens, como mostra a Tabela 1. Ao analisar a população das regiões brasileiras, também apontada na tabela mencionada, observa-se um maior número de mulheres em relação aos homens em todas as regiões, exceto para a região Norte, com percentual nacional de 51,11% de mulheres e 48,89% de homens. A região Sudeste abriga cerca de 46 milhões de mulheres, o que corresponde a 42,18% do total de mulheres no país. A segunda região é a Nordeste, com 29,56 milhões de mulheres, refletindo 27,31% da população feminina total.

De acordo com os últimos diagnósticos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2021), também em relação ao ano de 2020, constata-se que 33,1 milhões de habitantes (15,87% dos municípios participantes) não são atendidos com abastecimento de água, e 93,97 milhões (45,05% dos municípios participantes) não possuem esgotamento sanitário. As regiões Norte e Nordeste são as que apresentam menores índices de abastecimento de água e esgotamento sanitário, conforme apontado na Tabela 1. Ressalta-se que, embora o saneamento básico, conforme definição da Lei 11.445/2007 englobe outros serviços como Drenagem e Manejo de Águas Pluviais e Manejo dos Resíduos Sólidos Urbanos, o presente artigo tem como foco apenas os serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário.
Correlacionando os quantitativos habitacionais nas regiões mais populosas do país (Sudeste e Nordeste) aos índices de atendimento de água (no caso do Nordeste) e de atendimento de esgoto (tanto para o Nordeste, quanto para o Sudeste), observa-se o alto grau de impacto em número de habitantes, com destaque para as mulheres, nas duas regiões.

Nesse sentido, como forma de contribuição para o debate do saneamento básico pela perspectiva do gênero no país, ao longo do texto são apresentadas algumas razões pelas quais a indisponibilidade dos serviços de saneamento, em diversas localidades do Brasil, afeta com mais expressividade as mulheres.

Responsabilidades e Tarefas Domésticas: A partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), para o ano de 2019 (IBGE, 2021a), 34,9 milhões de mulheres (32,5% em relação ao total de mulheres) eram as pessoas responsáveis do domicílio. As taxas foram de 39,7% para as mulheres autodeclaradas pretas, 39,7% amarelas, 37,5% indígenas, 31,4% brancas e 31,2% pardas (Instituto Trata Brasil, 2022). Demonstrando, portanto, que além da questão do gênero, é de suma importância que a raça também seja incluída nas discussões, no planejamento e nas ações para universalização do saneamento. Além da responsabilidade financeira pelo domicílio, conforme mencionado anteriormente, as mulheres são tradicionalmente responsáveis pelas tarefas domésticas, que envolvem cozinhar, lavar roupa, cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos, limpar ou arrumar o domicílio e demais dependências (garagem, quintal ou jardim), cuidar das crianças e dos animais domésticos, dentre outras. Como essas atividades requerem quantidade significativa de água para que sejam realizadas, a sua escassez resulta em maior dificuldade e tempo dispendido para a execução das tarefas diárias básicas. Ainda, em alguns casos é necessário que a água seja adquirida em locais afastados da residência, ou através da compra de caminhão-pipa, impondo custo extra e carga de trabalho doméstico excedente sobre as mulheres.
Cuidados Pessoais, Saúde e Segurança: Na maioria dos casos, as mulheres têm necessidades adicionais de cuidados pessoais em relação aos homens, como higiene menstrual, cuidados com o cabelo e com a pele. Além da falta de acesso à água tratada, que dificulta a manutenção da higiene pessoal e da saúde física das mulheres, em UNFPA (2021) é apontado que, em locais onde os domicílios não possuem sanitários e as mulheres precisam utilizar locais em áreas externas e distantes de suas residências, em áreas isoladas e mal iluminadas, no percurso até esses pontos a segurança das mulheres nem sempre é assegurada, podendo ser vítimas de violência sexual e gerando impactos, muitas vezes irreversíveis, na sua saúde emocional. A insegurança relacionada à ausência de sanitários, ou locais com condições precárias de uso, resultam em retenção urinária por longos períodos e/ou não ingestão de líquidos, aumentando o risco de desidratação, bem como de infecções do trato urinário, principalmente bexiga e rins. Ainda, a escassez de água em condições apropriadas pode aumentar o risco de complicações durante a gravidez e parto, privando a mulher de realizar a higiene adequada dos recém-nascidos.
Oportunidades econômicas: Outro fator que merece destaque refere-se ao impacto econômico decorrente da impossibilidade ou atuação limitada da mulher no mercado de trabalho devido, dentre outros fatores, ao tempo dispendido em atividades básicas face a ausência de abastecimento de água e de sistemas de coleta e tratamento de esgoto. De acordo com IBGE (2021b), para o ano de 2019, as mulheres dedicaram, em média, 20,7 horas semanais aos cuidados pessoais e afazeres domésticos realizados em casa ou nas moradias de parentes, enquanto os homens dedicaram apenas 10,9 horas por semana. Essa diferença resultou em uma distribuição desigual, onde as mulheres foram responsáveis por 71,1% do tempo total dedicado a essas atividades, enquanto os homens representaram apenas 28,9%. Isso reflete uma maior frequência e maior tempo de dedicação das mulheres nessas tarefas, ressaltando a existência de uma divisão desigual do trabalho doméstico e dos cuidados pessoais, impactando na renda da população feminina e aumentando as disparidades socioeconômicas. Ainda de acordo com os dados da PNADC de 2019 (IBGE, 2021a), o avaliar apenas a população feminina, foi observado que as mulheres que viviam em moradias sem acesso à água tratada recebiam, em média, um salário 45,1% inferior às mulheres que residiam em domicílios com esse serviço disponível. Além disso, as mulheres que habitavam em residências sem coleta de esgoto por rede geral ganhavam, em média, 34,4% a menos em comparação às mulheres que viviam em domicílios conectados a sistemas de coleta de esgoto.
Pobreza Menstrual: Além da falta de acesso a itens de higiene menstrual, como absorventes e coletores menstruais, a disponibilidade limitada e insuficiente de instalações sanitárias, água limpa e higiene apropriada são fatores que podem agravar os desafios enfrentados pelas mulheres durante o período menstrual, uma vez que a ausência de banheiros limpos e privados dificulta a troca de absorventes higiênicos de maneira correta e segura. Estes aspectos podem levar a situações embaraçosas, desconforto e falta de privacidade para as mulheres durante a menstruação. Ainda, a falta de acesso a água impede as mulheres de higienizarem as mãos, os absorventes ou de manterem-se devidamente limpas durante este período, podendo aumentar o risco de infecções e outras complicações de saúde (Instituto Trata Brasil, 2022). De acordo com dados do relatório intitulado “Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos” (UNFPA, 2021), cerca de 321 mil alunas, o que representa 3,0% do total de meninas estudantes brasileiras, frequentam escolas que não possuem banheiros em condições de uso. Dessas, aproximadamente 121 mil meninas estão localizadas na região Nordeste, o que equivale a 37,8% do total de meninas estudantes em escolas sem banheiro adequado. A falta de banheiros em condições adequadas nas escolas acarreta a evasão escolar, uma vez que as meninas não conseguem realizar a higiene pessoal de maneira apropriada e, por isso, deixam de frequentar a escola no período menstrual. Essa situação coloca essas meninas em uma posição desfavorável em termos de competitividade no mercado de trabalho.
É importante ressaltar que, conforme discutido no início do artigo, as consequências da infraestrutura ineficiente e deficiente de saneamento na vida da população brasileira, podem variar dependendo do contexto cultural, socioeconômico e geográfico. No entanto, estudos mostram que a universalização dos serviços de saneamento básico e o aumento de renda a ela associado trariam uma forte redução da incidência de pobreza para as mulheres, principalmente nas camadas mais pobres da população. Conforme abordado em Instituto Trata Brasil (2022), um total de 18,36 milhões de mulheres (o que corresponde a cerca de 17% da população feminina total) deixariam a pobreza com a universalização do saneamento, com maior destaque para o Nordeste, onde o número de mulheres afetadas positivamente seria em torno de 9 milhões, seguido do Sudeste, com 4,6 milhões, Norte, com 2,8 milhões, Sul 1,1 milhão e Centro-Oeste, com 0,86 milhão.
Com base no exposto, fica evidente que a ausência da infraestrutura adequada de saneamento, especialmente relacionada aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, afeta de maneira mais intensa a vida das mulheres em comparação com os homens. Neste cenário, a população feminina enfrenta desafios específicos relacionados ao acesso a serviços de saneamento básico, o que afeta sua saúde física e mental, segurança, dignidade e as coloca em uma posição de maior vulnerabilidade, limitando seu acesso à educação, oportunidades de trabalho e participação social. Portanto, faz-se urgente a inclusão da questão do gênero nos espaços de discussão sobre saneamento, considerando as necessidades específicas das mulheres, a fim de alcançar maior igualdade na elaboração das políticas públicas deste setor.
Para que seja possível o avanço nessas questões, destaca-se a importância da participação feminina em todas as etapas do planejamento, implementação e monitoramento de projetos de saneamento, bem como a promoção de iniciativas que combatam a violência de gênero nos espaços públicos. Além disso, é necessário fortalecer os mecanismos de participação e representação das mulheres, ampliando sua voz e influência nas tomadas de decisão relacionadas ao saneamento básico.
Dessa forma, somente por meio de uma abordagem inclusiva, que reconheça as desigualdades de gênero e promova a participação ativa das mulheres, podemos avançar na construção de um país onde todas as pessoas tenham acesso ao saneamento básico e às condições de vida dignas e saudáveis, independentemente do seu gênero.
Referências Bibliográficas
IBGE. Projeções da População do Brasil e Unidades da Federação por sexo e idade: 2010-2060. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html. Acesso em 17/07/2023.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019 – PNADC. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro, 2021a.
IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro, 2021b.
Instituto Trata Brasil. O Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira. Instituto Trata Brasil. em parceria com a BRK Ambienta. apoio da Rede Brasil do Pacto Global e conduzido pela Ex Ante Consultoria. Maio de 2022.
SNIS. Diagnóstico Temático – Serviços de Água e Esgoto. Visão Geral. Ano de referência 2020. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Secretaria Nacional de Saneamento – SNS. Ministério do Desenvolvimento Regional. Brasília, dezembro de 2021.

UNFPA. Pobreza menstrual no Brasil desigualdades e violações de direitos. Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). 2021.

Monique de Faria Marins é Engenheira Agrícola e Ambiental pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Engenheira Civil pelo Centro Universitário Anhanguera de Niterói, Mestra em Meio Ambiente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) e Doutora em Dinâmica dos Oceanos e da Terra pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professora horista da disciplina Hidrologia Aplicada no Departamento de Engenharia Civil da PUC-Rio, além de ministrar o módulo “Gestão de Águas Pluviais Urbanas e Sistemas de Drenagem” no curso de Pós-Graduação Lato – Sensu (Especialização) em Engenharia de Saneamento Básico e Ambiental, do Instituto Brasileiro de Educação Continuada (INBEC), e o módulo “Drenagem Urbana e Manejo de Águas Pluviais Urbanas” no curso de Extensão Novo Marco Regulatório do Saneamento básico: Aspectos Gerais, oferecido pelo Departamento de Engenharia Civil e administrado pela Coordenação Central de Extensão da PUC-Rio. É sócia-diretora da empresa Nascente Soluções Ambientais e de Recursos Hídricos, e possui experiência profissional no desenvolvimento de estudos, projetos e planos voltados para o controle de inundações, recursos hídricos, saneamento, modelagem hidrodinâmica de rios e canais, hidrologia, hidráulica, drenagem urbana, drenagem de rodovias e licenciamento ambiental.

 

Instagram: @monique.engenheira

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